Elben César
Cabeça cheia, mas não confusa
Durante a viagem para Águas de Lindóia, SP, para participar do 5º Congresso Brasileiro de Missões (CBM), de 13 a 17 de outubro de 2008, o Mineiro com Cara de Matuto leu o livro “Grandes Entrevistas”, de Jamierson Oliveira. Foi um bom preparo.
Na entrevista com Alderi Souza de Matos há uma palavra animadora: “Apesar de todos os seus percalços, o cristianismo legou ao mundo uma história de solidariedade e altruísmo, bem como ideais de liberdade, tolerância e democracia”. Na entrevista com Serguem Jessuí há uma acusação muito séria: “Fazemos muita referência ao atraso do mundo não cristão, mas precisamos ter consciência de que o chamado mundo cristão produz muitas desgraças. Quantas mortes de crianças são produzidas pelos embargos comerciais? As políticas macroeconômicas, geradas pelas nações cristãs ricas, aniquilam até mesmo outras nações cristãs coirmãs”. Na entrevista com David Botelho há uma informação curiosa: “O filme “Jesus”, produzido pela Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo, é o mais pirateado no mundo muçulmano”. Na entrevista com Satie Julia Mita, há uma referência, não à janela 10/40 (o cinturão geográfico que reúne a maioria dos povos não-alcançados), mas à janela 4/10 (o cinturão etário que envolve crianças de 4 a 10 anos, expostas à influência da criminalidade, da imoralidade e da violência, e que precisam ser evangelizadas). Na entrevista com José Carlos Alcântara, há um dado alarmante: “Cerca de três mil línguas carecem das Escrituras, totalizando quase 400 milhões de pessoas que não podem ler nem um versículo sequer da Bíblia em sua língua materna”. Na entrevista com Ronaldo Lidório, há uma informação incômoda para a igreja brasileira: “Há ainda 103 grupos indígenas sem a presença missionária”. E na entrevista com Silas Tostes, coordenador do 5º CBM, há uma queixa amarga: “Em benefício da evangelização do mundo temos que superar vários entraves: falta de base bíblica de missões e de uma teologia de sofrimento e sacrifício, igrejas denominacionalistas e sem visão, investimento somente naquilo que traz expansão do império ministerial, missionários mal treinados e desacompanhados no campo e deficiências de algumas agências missionárias, além de outros pontos”.
Com tudo isso em mente, o Mineiro com Cara de Matuto chegou a Águas de Lindóia.
Mães de joelhos, filhos em pé
O salão de convenções do Hotel Monte Real estava cheio. Além dos muitos participantes avulsos, havia 1.543 pessoas inscritas. Dos 66% que informaram sua filiação denominacional, quase todos eram membros de igrejas históricas: batistas bem na frente, seguidos dos presbiterianos. Por ser a maior denominação brasileira, a Assembléia de Deus teve poucos representantes. O Mineiro teve a impressão de que o CBM atrai muito mais gente do que os outros encontros e congressos realizados no país. Mais da metade dos participantes (59%) veio dos três estados vizinhos (SP, RJ e MG), e havia um bom número de jovens entre 21 e 30 anos (245 participantes).
As camisetas que os participantes usavam davam vários recados. Uma delas dizia: “Jesus, 1º amor” e lembrava as palavras de Jesus ao pastor de Éfeso: “Você abandonou o seu primeiro amor” (Ap 2.4). Mayra Litz, do Projeto Pró-Vida, de Belém do Pará, grávida pela primeira vez, vestia uma camiseta com os dizeres: “Não criamos filhos para povoar o inferno” (na frente) e “Mães de joelhos, filhos em pé” (atrás).
Corroborando a certeza de Mayra e de seu marido Thomaz, o Mineiro se lembrou do testemunho dado por Dora e Nelson Bomilcar naquela manhã. Ela é uma das coordenadoras do ministério Desperta Débora e ele, pastor e missionário. Ambos são filhos de Laura Bomilcar, cantora de rádio dos idos de 1945-1950, convertida ao evangelho em 1965. Depois do encontro com Cristo, Laura começou a orar pelos filhos, consagrando-os ao Senhor, e Deus ouviu suas orações.
Mulheres no campo missionário e no púlpito
As mulheres eram maioria entre os participantes (quase o dobro do número de homens), mas minoria entre os preletores (menos de 20%) e entre os organizadores (25%). Todavia, não houve injustiça contra elas, pois dos cinco preletores das oito palestras realizadas pela manhã três eram mulheres (Durvalina Bezerra, Barbara Helen Burns e Antonia Leonora van der Meer).
De fato, a mulher tem um papel importante na história de missões. Em um impresso do “Internacional Bulletin of Missionary Research”, há a informação de que existem 4,4 milhões de mulheres exercendo algum ministério cristão de tempo integral ao redor do mundo. Um amigo de Brasília relatou ao Mineiro que dos 1.901 missionários católicos brasileiros que estão no exterior, 1.502 são mulheres (78,15%). Outros relatórios confirmam a predominância de missionárias sobre missionários. A InterAct, por exemplo, missão evangélica sueca da qual faz parte o missiólogo Bertil Ekströn, tem 41 mulheres e 35 homens no campo. O mesmo acontece com a missão americana à qual pertence o missiólogo Timóteo Carriker -- 58% dos missionários são do sexo feminino. Para encorajamento das mulheres presentes, alguém deveria ter lembrado que há 140 anos os congregacionais fundaram nos Estados Unidos a Junta Feminina de Missões Estrangeiras.
Embora seja uma prática recente, contra a qual ainda há muita resistência, é cada vez maior o número de pastoras. Exemplo impressionante vem da Igreja Luterana da Suécia: as primeiras três pastoras foram ordenadas há menos de 50 anos (abril de 1960). Hoje, dos 4.386 clérigos da igreja sueca, 1.915 são mulheres (43,6%).
Parceiros do sucesso ou do fracasso missionário
Nos primeiros congressos missionários realizados no Brasil, era comum encontrar jovens e adultos que se sentiam vocacionados para missões, mas permaneciam nesse estágio. No 5º CBM foi possível encontrar vários desses ex-candidatos -- agora missionários de fato. O público ouviu o testemunho de alguns deles e ficou impressionado. O próprio Mineiro reencontrou missionários que havia visitado anos antes em Angola (Maria Pires, Analzira Pereira do Nascimento, Valdeci Anacleto e Osvaldo Lopes), em Macau (Olinto e Dalziléa de Oliveira e Shalon Fan) e na Áustria (Paulo Moreira Filho).
Ao se medir a obra missionária brasileira, chega-se à conclusão de que os acertos, os avanços e os sucessos são bem maiores do que os erros, recuos e fracassos. Antes, havia muita empolgação e pouco amadurecimento, o envio de missionários era desordenado e afoito, não se procurava uma formação missionária, não havia escolas de missão e assim por diante. Por causa disso, a permanência no campo era muito curta e muitos missionários retornavam, produzindo efeitos negativos para os missionários, para as igrejas enviadoras e para as igrejas receptoras. Embora a taxa de retenção de missionários no campo de outros países enviadores ainda seja maior do que a brasileira (70% para aqueles e 52% para o Brasil), nossos missionários estão permanecendo cada vez mais tempo no campo. A direção do CBM chamou à frente e homenageou vários deles que estavam presentes no evento.
Um dos livros lançados durante o congresso foi o “Dignos de Cuidados” (Editora Descoberta), escrito por cinco respeitados pesquisadores estrangeiros. O assunto do livro é a retenção missionária no âmbito mundial. A permanência do missionário transcultural no campo não depende apenas dele. São parceiros de sua permanência ou de sua volta prematura: a família, a igreja da qual o missionário é membro, a agência missionária que o enviou, os irmãos e as organizações que assumiram livremente a obrigação de sustentá-lo no campo e também todos aqueles que prometeram orar por ele. A agência ou a escola missionária que forneceu o preparo bíblico, teológico, missiológico, antropológico, devocional e outros, tem sua parte tanto no sucesso como no fracasso do missionário.
Há que se fazer distinção entre o retorno prematuro inevitável e o retorno potencialmente evitável. No primeiro caso, podem estar a aposentadoria normal, a morte no campo, ou a conclusão do projeto abraçado e desenvolvido. No segundo, estão os problemas pessoais, familiares, relacionamentos difíceis com colegas missionários e com agências, e problemas culturais (falta de contextualização ou dificuldade na aprendizagem da língua estrangeira).
Ao tratar do delicado assunto da volta prematura dos missionários, ninguém se lembrou dos dois Joãos: João Marcos (no primeiro século) e John Wesley (no século 18). O primeiro deixou Paulo na mão no início da primeira viagem missionária e voltou para casa (At 13.13). O segundo permaneceu pouco mais de dois anos como missionário nos Estados Unidos (de outubro de 1735 a janeiro de 1738) e também voltou para casa depois de uma série de insucessos. Porém ambos vieram a crescer e a amadurecer e foram muito bem-sucedidos posteriormente (2Tm 4.11).
O acupunturista que evangelizava os pacientes enquanto os perfurava de agulhas
Entre os preletores do 5º CBM estavam o indonesiano Gideon Imanto Taubunaan e o nigeriano Reuben E. Ezemadu. Taubunaan é formado em física nuclear, mas dedicou-se à atividade missionária. É doutor em estudos interculturais pelo seminário Fuller, na Califórnia. É fundador e diretor de muitos empreendimentos nacionais e internacionais. Ele contou a história de um muçulmano que se converteu numa penitenciária indonesiana e, depois de livre, tornou-se médico acupunturista e começou a evangelizar seus pacientes enquanto os perfurava com agulhas. Por ser muito conhecido, ele alcançou muita gente de nível social elevado. O pregador indonesiano falou em indonésio e foi interpretado pelo brasileiro Isaque Hattu, que também interpretou o presidente Lula quando ele esteve em Jacarta, em julho de 2008, e o presidente da Indonésia quando este veio a Brasília em novembro do mesmo ano. Após a palavra de Taubunaan, fez-se o lançamento do livro “Povos Não Alcançados da Indonésia”, ricamente ilustrado, traduzido pela missióloga indonesiana de origem chinesa Margaretha Adiwardana e publicado pela Associação Missão Esperança (AME). A Indonésia é o maior arquipélago (mais de 17 mil ilhas) e o país de maior população muçulmana do mundo.
Ezemadu, o segundo preletor estrangeiro, é um velho amigo do Mineiro. Por terem sido membros da Associação de Missões do Terceiro Mundo (TWMA), se encontraram várias vezes, na Coréia do Sul, no Japão e até mesmo no Brasil, no Centro Evangélico de Missões (CEM), em Viçosa, MG. O nigeriano é fundador e diretor internacional da Fundação Cristã Missionária, que tem 383 missionários na Nigéria e em outros nove países africanos. Em sua fala, Ezemadu queixou-se dos colonizadores europeus que traçaram as fronteiras da África a seu bel-prazer, separando geograficamente populações inteiras da mesma etnia e da mesma língua -- uma das maiores causas dos constantes atritos bélicos no continente. Ele projetou o lado oriental da África e o lado ocidental da América do Sul, mostrando como os contornos de ambos os continentes indicam que eles estiveram unidos em algum passado remoto. “Poderíamos nos reencontrar, quem sabe por meio da troca de missionários: os nigerianos viriam para a Bahia para evangelizar os descendentes de escravos, e os brasileiros iriam para a Nigéria e outros países para evangelizar os descendentes dos escravos que voltaram para a África”.
Diversidade missionária
Entre os missionários que o Mineiro encontrou em Águas de Lindóia, estava uma moça que tinha acabado de completar 21 anos. Apesar da tenra idade, Raquel Froes Napoli já passou um ano na Bolívia (onde aprendeu a língua e como lidar com outra cultura), cinco meses no Reino Unido (onde aprendeu inglês e a arte da intercessão missionária) e quatro anos na Índia (onde concluiu seus estudos básicos e integrou uma equipe de jovens que levava Jesus aos jovens nativos). Nascida em Guarulhos, SP, e filha de pastor presbiteriano, Raquel teve uma experiência de conversão ainda criança e, com a idade de 14 anos, entendeu que Deus a estava chamando para ser missionária. A essa altura, David Botelho, fundador da Horizontes América Latina, em Monte Verde, MG, estava empolgado com o projeto Revolution Teen, cujo propósito é preparar adolescentes para missões, valendo-se de exemplos da história bíblica (caso daquela menina israelita que trabalhava na casa de Naamã, militar da mais alta patente do exército sírio) e da história de missões (casos de John Wesley, Dwight Moody e João Ferreira de Almeida, que começou a traduzir a Bíblia para o português aos 16 anos).
Além do mais, é muito mais fácil aprender outra língua e adaptar-se a uma nova cultura quando se é jovem. Antes de completar 15 anos, Raquel já estava em Monte Verde para receber sua formação secular e missiológica.
O Mineiro encontrou também o jovem médico José Rocha Júnior. Aos 37 anos, ele e sua esposa, Andréa, um ano mais nova, e os três filhos são missionários no Senegal, na costa Atlântica da África, há nove anos. Eles desenvolvem projetos integrais na área de saúde, evangelismo e discipulado em Dakar. Júnior tinha 20 anos quando participou do Encontro Fazedores de Tendas, realizado no CEM em outubro de 1992, com a presença do médico canadense Steven Foster, missionário em Angola, e de J. Christy Wilson, engenheiro no Afeganistão. Foi quando recebeu o chamado para trabalhar como médico missionário.
O Mineiro conheceu também um outro brasileiro, que é auxiliar administrativo de uma multinacional no Afeganistão. Ele aproveita as horas vagas para treinar cristãos locais e líderes de organizações não-governamentais que trabalham na área de educação e da Jocum. Era usuário de drogas até a idade de 18 anos, quando se converteu na cidade do Rio de Janeiro. Recebeu o chamado ao ler o livro de Atos e perceber que toda aquela movimentação para proclamar Cristo a todas as nações deve continuar, porque a obra não terminou.
Num dos estandes havia um grupo de jovens que chamou a atenção do Mineiro. Todos são ex-missionários da Jocum e vivem em Petrópolis, RJ. Embora sejam membros de diferentes denominações, estão juntos porque têm o mesmo ideal e servem a Deus sob o mesmo guarda-chuva, a 3C Network. Um dos trabalhos deste grupo de pesquisadores (historiadores, gestores e comunicadores) é prestar auxílio às missões e aos missionários. O ministério do grupo é financiado por corporações, instituições e indivíduos.
Ainda há muito por fazer
No que diz respeito à proclamação do evangelho ao mundo todo, as notícias são alvissareiras e surpreendentes. Hoje há mais cristãos não-brancos (56%) do que brancos (44%). Temos, no momento, 4.340 agências missionárias e 443 mil missionários cristãos (católicos, ortodoxos e protestantes) ao redor do mundo. Destes, 19 mil são africanos servindo ao Senhor em outros continentes. O número de missiólogos (pesquisadores, incentivadores, professores de missão, autores de livros sobre missão, estatísticos etc.) cresce a cada ano. O mesmo acontece com as escolas de missão. Vários países, como Coréia do Sul, Nigéria, Filipinas e Brasil, deixaram de ser exclusivamente campos missionários para se tornarem países enviadores de missionários. Desde a Conferência de Evangelização Mundial (conhecida como Lausanne I), realizada em Lausanne, na Suíça, em 1974, temos tido vários congressos missionários de âmbito mundial (Lausanne II, em Manila, em 1989), intercontinental (Congresso Missionário Ibero-Americano, em São Paulo, em 1987) e nacional (o Congresso da Aliança Bíblica Universitária do Brasil em 1976, os Congressos Brasileiros de Evangelização em 1983 e 2003, e os quatro primeiros CBMs).
Apesar de tanta surpresa e avanço, ainda há muito por fazer e os desafios são enormes. Por causa da descristianização das nações mormente européias, agora a igreja cristã é obrigada a reevangelizá-las (há missionários negros e pobres tentando ganhar para Cristo os anglo-saxões e latinos brancos e ricos). Em dois milênios de missões, dos 6,6 bilhões de habitantes, apenas 2,2 bilhões se declaram cristãos (31,4%). Dom Eugênio Sales, arcebispo emérito do Rio de Janeiro, foi mais categórico ao afirmar que apenas 18% dos homens conhecem a Cristo. É provável que a porcentagem seja menor. O número de cristãos evangélicos está em torno de 259 milhões.
O que acontecerá em outubro de 2010 é fantástico. A Cidade do Cabo, na África do Sul, deverá sediar a 3ª Conferência de Evangelização Mundial, o Lausanne 3. Além do encorajamento evangelístico e missionário que os crentes receberão ali, o evento terá um significado histórico. Na mesma data e local, duzentos anos antes, deveria ter acontecido a primeira conferência missionária internacional, por iniciativa de William Carey (1761-1834), missionário inglês na Índia, conhecido como o “pai das missões modernas”. O projeto de Carey não foi concretizado, mas, cem anos depois, o americano John R. Mott (1865-1955) liderou a memorável Conferência de Edimburgo, na Escócia (outubro de 1910).
Outro acontecimento notável será a 6ª edição do CBM, que acontecerá no Nordeste pela primeira vez (Recife, em 2011).
O Mineiro com Cara de Matuto, leitor compulsivo de John Stott, faz questão de terminar essa reportagem citando o próprio: “Os seres humanos, criados por Deus, à imagem de Deus e para Deus, passarão a eternidade sem Deus, irrevogavelmente banidos da sua presença. Há uma solene alternativa diante de nós: a participação ou a exclusão da glória de Jesus” (A Bíblia Toda, O Ano Todo, p. 352).
Na entrevista com Alderi Souza de Matos há uma palavra animadora: “Apesar de todos os seus percalços, o cristianismo legou ao mundo uma história de solidariedade e altruísmo, bem como ideais de liberdade, tolerância e democracia”. Na entrevista com Serguem Jessuí há uma acusação muito séria: “Fazemos muita referência ao atraso do mundo não cristão, mas precisamos ter consciência de que o chamado mundo cristão produz muitas desgraças. Quantas mortes de crianças são produzidas pelos embargos comerciais? As políticas macroeconômicas, geradas pelas nações cristãs ricas, aniquilam até mesmo outras nações cristãs coirmãs”. Na entrevista com David Botelho há uma informação curiosa: “O filme “Jesus”, produzido pela Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo, é o mais pirateado no mundo muçulmano”. Na entrevista com Satie Julia Mita, há uma referência, não à janela 10/40 (o cinturão geográfico que reúne a maioria dos povos não-alcançados), mas à janela 4/10 (o cinturão etário que envolve crianças de 4 a 10 anos, expostas à influência da criminalidade, da imoralidade e da violência, e que precisam ser evangelizadas). Na entrevista com José Carlos Alcântara, há um dado alarmante: “Cerca de três mil línguas carecem das Escrituras, totalizando quase 400 milhões de pessoas que não podem ler nem um versículo sequer da Bíblia em sua língua materna”. Na entrevista com Ronaldo Lidório, há uma informação incômoda para a igreja brasileira: “Há ainda 103 grupos indígenas sem a presença missionária”. E na entrevista com Silas Tostes, coordenador do 5º CBM, há uma queixa amarga: “Em benefício da evangelização do mundo temos que superar vários entraves: falta de base bíblica de missões e de uma teologia de sofrimento e sacrifício, igrejas denominacionalistas e sem visão, investimento somente naquilo que traz expansão do império ministerial, missionários mal treinados e desacompanhados no campo e deficiências de algumas agências missionárias, além de outros pontos”.
Com tudo isso em mente, o Mineiro com Cara de Matuto chegou a Águas de Lindóia.
Mães de joelhos, filhos em pé
O salão de convenções do Hotel Monte Real estava cheio. Além dos muitos participantes avulsos, havia 1.543 pessoas inscritas. Dos 66% que informaram sua filiação denominacional, quase todos eram membros de igrejas históricas: batistas bem na frente, seguidos dos presbiterianos. Por ser a maior denominação brasileira, a Assembléia de Deus teve poucos representantes. O Mineiro teve a impressão de que o CBM atrai muito mais gente do que os outros encontros e congressos realizados no país. Mais da metade dos participantes (59%) veio dos três estados vizinhos (SP, RJ e MG), e havia um bom número de jovens entre 21 e 30 anos (245 participantes).
As camisetas que os participantes usavam davam vários recados. Uma delas dizia: “Jesus, 1º amor” e lembrava as palavras de Jesus ao pastor de Éfeso: “Você abandonou o seu primeiro amor” (Ap 2.4). Mayra Litz, do Projeto Pró-Vida, de Belém do Pará, grávida pela primeira vez, vestia uma camiseta com os dizeres: “Não criamos filhos para povoar o inferno” (na frente) e “Mães de joelhos, filhos em pé” (atrás).
Corroborando a certeza de Mayra e de seu marido Thomaz, o Mineiro se lembrou do testemunho dado por Dora e Nelson Bomilcar naquela manhã. Ela é uma das coordenadoras do ministério Desperta Débora e ele, pastor e missionário. Ambos são filhos de Laura Bomilcar, cantora de rádio dos idos de 1945-1950, convertida ao evangelho em 1965. Depois do encontro com Cristo, Laura começou a orar pelos filhos, consagrando-os ao Senhor, e Deus ouviu suas orações.
Mulheres no campo missionário e no púlpito
As mulheres eram maioria entre os participantes (quase o dobro do número de homens), mas minoria entre os preletores (menos de 20%) e entre os organizadores (25%). Todavia, não houve injustiça contra elas, pois dos cinco preletores das oito palestras realizadas pela manhã três eram mulheres (Durvalina Bezerra, Barbara Helen Burns e Antonia Leonora van der Meer).
De fato, a mulher tem um papel importante na história de missões. Em um impresso do “Internacional Bulletin of Missionary Research”, há a informação de que existem 4,4 milhões de mulheres exercendo algum ministério cristão de tempo integral ao redor do mundo. Um amigo de Brasília relatou ao Mineiro que dos 1.901 missionários católicos brasileiros que estão no exterior, 1.502 são mulheres (78,15%). Outros relatórios confirmam a predominância de missionárias sobre missionários. A InterAct, por exemplo, missão evangélica sueca da qual faz parte o missiólogo Bertil Ekströn, tem 41 mulheres e 35 homens no campo. O mesmo acontece com a missão americana à qual pertence o missiólogo Timóteo Carriker -- 58% dos missionários são do sexo feminino. Para encorajamento das mulheres presentes, alguém deveria ter lembrado que há 140 anos os congregacionais fundaram nos Estados Unidos a Junta Feminina de Missões Estrangeiras.
Embora seja uma prática recente, contra a qual ainda há muita resistência, é cada vez maior o número de pastoras. Exemplo impressionante vem da Igreja Luterana da Suécia: as primeiras três pastoras foram ordenadas há menos de 50 anos (abril de 1960). Hoje, dos 4.386 clérigos da igreja sueca, 1.915 são mulheres (43,6%).
Parceiros do sucesso ou do fracasso missionário
Nos primeiros congressos missionários realizados no Brasil, era comum encontrar jovens e adultos que se sentiam vocacionados para missões, mas permaneciam nesse estágio. No 5º CBM foi possível encontrar vários desses ex-candidatos -- agora missionários de fato. O público ouviu o testemunho de alguns deles e ficou impressionado. O próprio Mineiro reencontrou missionários que havia visitado anos antes em Angola (Maria Pires, Analzira Pereira do Nascimento, Valdeci Anacleto e Osvaldo Lopes), em Macau (Olinto e Dalziléa de Oliveira e Shalon Fan) e na Áustria (Paulo Moreira Filho).
Ao se medir a obra missionária brasileira, chega-se à conclusão de que os acertos, os avanços e os sucessos são bem maiores do que os erros, recuos e fracassos. Antes, havia muita empolgação e pouco amadurecimento, o envio de missionários era desordenado e afoito, não se procurava uma formação missionária, não havia escolas de missão e assim por diante. Por causa disso, a permanência no campo era muito curta e muitos missionários retornavam, produzindo efeitos negativos para os missionários, para as igrejas enviadoras e para as igrejas receptoras. Embora a taxa de retenção de missionários no campo de outros países enviadores ainda seja maior do que a brasileira (70% para aqueles e 52% para o Brasil), nossos missionários estão permanecendo cada vez mais tempo no campo. A direção do CBM chamou à frente e homenageou vários deles que estavam presentes no evento.
Um dos livros lançados durante o congresso foi o “Dignos de Cuidados” (Editora Descoberta), escrito por cinco respeitados pesquisadores estrangeiros. O assunto do livro é a retenção missionária no âmbito mundial. A permanência do missionário transcultural no campo não depende apenas dele. São parceiros de sua permanência ou de sua volta prematura: a família, a igreja da qual o missionário é membro, a agência missionária que o enviou, os irmãos e as organizações que assumiram livremente a obrigação de sustentá-lo no campo e também todos aqueles que prometeram orar por ele. A agência ou a escola missionária que forneceu o preparo bíblico, teológico, missiológico, antropológico, devocional e outros, tem sua parte tanto no sucesso como no fracasso do missionário.
Há que se fazer distinção entre o retorno prematuro inevitável e o retorno potencialmente evitável. No primeiro caso, podem estar a aposentadoria normal, a morte no campo, ou a conclusão do projeto abraçado e desenvolvido. No segundo, estão os problemas pessoais, familiares, relacionamentos difíceis com colegas missionários e com agências, e problemas culturais (falta de contextualização ou dificuldade na aprendizagem da língua estrangeira).
Ao tratar do delicado assunto da volta prematura dos missionários, ninguém se lembrou dos dois Joãos: João Marcos (no primeiro século) e John Wesley (no século 18). O primeiro deixou Paulo na mão no início da primeira viagem missionária e voltou para casa (At 13.13). O segundo permaneceu pouco mais de dois anos como missionário nos Estados Unidos (de outubro de 1735 a janeiro de 1738) e também voltou para casa depois de uma série de insucessos. Porém ambos vieram a crescer e a amadurecer e foram muito bem-sucedidos posteriormente (2Tm 4.11).
O acupunturista que evangelizava os pacientes enquanto os perfurava de agulhas
Entre os preletores do 5º CBM estavam o indonesiano Gideon Imanto Taubunaan e o nigeriano Reuben E. Ezemadu. Taubunaan é formado em física nuclear, mas dedicou-se à atividade missionária. É doutor em estudos interculturais pelo seminário Fuller, na Califórnia. É fundador e diretor de muitos empreendimentos nacionais e internacionais. Ele contou a história de um muçulmano que se converteu numa penitenciária indonesiana e, depois de livre, tornou-se médico acupunturista e começou a evangelizar seus pacientes enquanto os perfurava com agulhas. Por ser muito conhecido, ele alcançou muita gente de nível social elevado. O pregador indonesiano falou em indonésio e foi interpretado pelo brasileiro Isaque Hattu, que também interpretou o presidente Lula quando ele esteve em Jacarta, em julho de 2008, e o presidente da Indonésia quando este veio a Brasília em novembro do mesmo ano. Após a palavra de Taubunaan, fez-se o lançamento do livro “Povos Não Alcançados da Indonésia”, ricamente ilustrado, traduzido pela missióloga indonesiana de origem chinesa Margaretha Adiwardana e publicado pela Associação Missão Esperança (AME). A Indonésia é o maior arquipélago (mais de 17 mil ilhas) e o país de maior população muçulmana do mundo.
Ezemadu, o segundo preletor estrangeiro, é um velho amigo do Mineiro. Por terem sido membros da Associação de Missões do Terceiro Mundo (TWMA), se encontraram várias vezes, na Coréia do Sul, no Japão e até mesmo no Brasil, no Centro Evangélico de Missões (CEM), em Viçosa, MG. O nigeriano é fundador e diretor internacional da Fundação Cristã Missionária, que tem 383 missionários na Nigéria e em outros nove países africanos. Em sua fala, Ezemadu queixou-se dos colonizadores europeus que traçaram as fronteiras da África a seu bel-prazer, separando geograficamente populações inteiras da mesma etnia e da mesma língua -- uma das maiores causas dos constantes atritos bélicos no continente. Ele projetou o lado oriental da África e o lado ocidental da América do Sul, mostrando como os contornos de ambos os continentes indicam que eles estiveram unidos em algum passado remoto. “Poderíamos nos reencontrar, quem sabe por meio da troca de missionários: os nigerianos viriam para a Bahia para evangelizar os descendentes de escravos, e os brasileiros iriam para a Nigéria e outros países para evangelizar os descendentes dos escravos que voltaram para a África”.
Diversidade missionária
Entre os missionários que o Mineiro encontrou em Águas de Lindóia, estava uma moça que tinha acabado de completar 21 anos. Apesar da tenra idade, Raquel Froes Napoli já passou um ano na Bolívia (onde aprendeu a língua e como lidar com outra cultura), cinco meses no Reino Unido (onde aprendeu inglês e a arte da intercessão missionária) e quatro anos na Índia (onde concluiu seus estudos básicos e integrou uma equipe de jovens que levava Jesus aos jovens nativos). Nascida em Guarulhos, SP, e filha de pastor presbiteriano, Raquel teve uma experiência de conversão ainda criança e, com a idade de 14 anos, entendeu que Deus a estava chamando para ser missionária. A essa altura, David Botelho, fundador da Horizontes América Latina, em Monte Verde, MG, estava empolgado com o projeto Revolution Teen, cujo propósito é preparar adolescentes para missões, valendo-se de exemplos da história bíblica (caso daquela menina israelita que trabalhava na casa de Naamã, militar da mais alta patente do exército sírio) e da história de missões (casos de John Wesley, Dwight Moody e João Ferreira de Almeida, que começou a traduzir a Bíblia para o português aos 16 anos).
Além do mais, é muito mais fácil aprender outra língua e adaptar-se a uma nova cultura quando se é jovem. Antes de completar 15 anos, Raquel já estava em Monte Verde para receber sua formação secular e missiológica.
O Mineiro encontrou também o jovem médico José Rocha Júnior. Aos 37 anos, ele e sua esposa, Andréa, um ano mais nova, e os três filhos são missionários no Senegal, na costa Atlântica da África, há nove anos. Eles desenvolvem projetos integrais na área de saúde, evangelismo e discipulado em Dakar. Júnior tinha 20 anos quando participou do Encontro Fazedores de Tendas, realizado no CEM em outubro de 1992, com a presença do médico canadense Steven Foster, missionário em Angola, e de J. Christy Wilson, engenheiro no Afeganistão. Foi quando recebeu o chamado para trabalhar como médico missionário.
O Mineiro conheceu também um outro brasileiro, que é auxiliar administrativo de uma multinacional no Afeganistão. Ele aproveita as horas vagas para treinar cristãos locais e líderes de organizações não-governamentais que trabalham na área de educação e da Jocum. Era usuário de drogas até a idade de 18 anos, quando se converteu na cidade do Rio de Janeiro. Recebeu o chamado ao ler o livro de Atos e perceber que toda aquela movimentação para proclamar Cristo a todas as nações deve continuar, porque a obra não terminou.
Num dos estandes havia um grupo de jovens que chamou a atenção do Mineiro. Todos são ex-missionários da Jocum e vivem em Petrópolis, RJ. Embora sejam membros de diferentes denominações, estão juntos porque têm o mesmo ideal e servem a Deus sob o mesmo guarda-chuva, a 3C Network. Um dos trabalhos deste grupo de pesquisadores (historiadores, gestores e comunicadores) é prestar auxílio às missões e aos missionários. O ministério do grupo é financiado por corporações, instituições e indivíduos.
Ainda há muito por fazer
No que diz respeito à proclamação do evangelho ao mundo todo, as notícias são alvissareiras e surpreendentes. Hoje há mais cristãos não-brancos (56%) do que brancos (44%). Temos, no momento, 4.340 agências missionárias e 443 mil missionários cristãos (católicos, ortodoxos e protestantes) ao redor do mundo. Destes, 19 mil são africanos servindo ao Senhor em outros continentes. O número de missiólogos (pesquisadores, incentivadores, professores de missão, autores de livros sobre missão, estatísticos etc.) cresce a cada ano. O mesmo acontece com as escolas de missão. Vários países, como Coréia do Sul, Nigéria, Filipinas e Brasil, deixaram de ser exclusivamente campos missionários para se tornarem países enviadores de missionários. Desde a Conferência de Evangelização Mundial (conhecida como Lausanne I), realizada em Lausanne, na Suíça, em 1974, temos tido vários congressos missionários de âmbito mundial (Lausanne II, em Manila, em 1989), intercontinental (Congresso Missionário Ibero-Americano, em São Paulo, em 1987) e nacional (o Congresso da Aliança Bíblica Universitária do Brasil em 1976, os Congressos Brasileiros de Evangelização em 1983 e 2003, e os quatro primeiros CBMs).
Apesar de tanta surpresa e avanço, ainda há muito por fazer e os desafios são enormes. Por causa da descristianização das nações mormente européias, agora a igreja cristã é obrigada a reevangelizá-las (há missionários negros e pobres tentando ganhar para Cristo os anglo-saxões e latinos brancos e ricos). Em dois milênios de missões, dos 6,6 bilhões de habitantes, apenas 2,2 bilhões se declaram cristãos (31,4%). Dom Eugênio Sales, arcebispo emérito do Rio de Janeiro, foi mais categórico ao afirmar que apenas 18% dos homens conhecem a Cristo. É provável que a porcentagem seja menor. O número de cristãos evangélicos está em torno de 259 milhões.
O que acontecerá em outubro de 2010 é fantástico. A Cidade do Cabo, na África do Sul, deverá sediar a 3ª Conferência de Evangelização Mundial, o Lausanne 3. Além do encorajamento evangelístico e missionário que os crentes receberão ali, o evento terá um significado histórico. Na mesma data e local, duzentos anos antes, deveria ter acontecido a primeira conferência missionária internacional, por iniciativa de William Carey (1761-1834), missionário inglês na Índia, conhecido como o “pai das missões modernas”. O projeto de Carey não foi concretizado, mas, cem anos depois, o americano John R. Mott (1865-1955) liderou a memorável Conferência de Edimburgo, na Escócia (outubro de 1910).
Outro acontecimento notável será a 6ª edição do CBM, que acontecerá no Nordeste pela primeira vez (Recife, em 2011).
O Mineiro com Cara de Matuto, leitor compulsivo de John Stott, faz questão de terminar essa reportagem citando o próprio: “Os seres humanos, criados por Deus, à imagem de Deus e para Deus, passarão a eternidade sem Deus, irrevogavelmente banidos da sua presença. Há uma solene alternativa diante de nós: a participação ou a exclusão da glória de Jesus” (A Bíblia Toda, O Ano Todo, p. 352).
Fonte: Revista Ultimato
*A Ultimato publicou em sua última edição várias matérias referentes ao 5º CBM.
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