Nota Veredas: a entrevista abaixo foi extraída da revista TodosNós, Nº 1, Maio- Julho de 2003. O honrado Dr. Hiebert veio a falecer em 2007.
______________________________
Ele também foi missionário. É professor de antropologia e autor de vários livros sobre antropologia missionária. Ele é considerado o principal antropólogo cristão da atualidade. Viaja ao redor do mundo dando palestras e cursos sobre missões em escolas missionárias e seminários. Ele é referencial para muitos líderes de missões em vários países.
Dr. Hiebert foi um dos principais preletores do 1º Congresso Nordestino de Missões, que aconteceu em outubro de 2002 na cidade de Caruaru/PE, onde gentilmente concedeu esta entrevista à Revista TODOSNÓS.
TODOSNÓS – Qual a importância da antropologia para a obra missionária?
PAUL HIEBERT – Eu creio que o missionário precisa pelo menos de duas coisas: uma é estudar as Escrituras, estudando teologia, teologia bíblica e teologia sistemática. A outra é estudar as pessoas e saber como se comunicar com as pessoas. A antropologia é importante para ajudar-nos a entender as pessoas. Muitos missionários não conhecem o povo, a cultura; a antropologia é essencial para que sejamos bons missionários. Mas a antropologia também pode nos ajudar a estudar as Escrituras porque ela nos ajuda a entender as pessoas envolvidas nas Escrituras.
TODOSNÓS – Quais os perigos e benefícios da contextualização das Sagradas Escrituras na pregação transcultural?
PAUL HIEBERT – O perigo da contextualização é quando colocamos a mensagem na língua local e na cultura do povo, porque a língua e a cultura do povo podem destruir, mudar a mensagem, ou afastá-la da verdade. Se não tivermos cuidado, o Evangelho pode ser convertido à cultura.
Mas há um perigo em não contextualizar; não teremos testemunha, nem mensagem, nem evangelismo. Em ambas as partes há perigo, mas o perigo de não contextualizar é maior do que o perigo de contextualizar.
Nós precisamos contextualizar criticamente, pensando e sabendo o que estamos fazendo, não só adotar tudo ou rejeitar tudo, mas fazer isso com critério.
TODOSNÓS – Quando fizermos alguma contextualização ou usarmos a antropologia para a pregação e ensino, não há algum perigo de deixarmos as Escrituras em segundo plano?
PAUL HIEBERT – Eu diria que o perigo é colocar a nossa teoria acima das Escrituras, a teoria social que usamos para estudar as pessoas, porque o Evangelho é para ganhar as pessoas. Então não podemos colocar as pessoas contra as escrituras; o Evangelho é para as pessoas. Mas também há o mesmo perigo na teologia sistemática e teologia bíblica, porque usamos métodos humanos para estudar as Escrituras. Então, existe o mesmo perigo em fazer teologia e fazer missiologia.
TODOSNÓS – O senhor pode citar algum exemplo na Bíblia onde Jesus usou a contextualização em seus ensinos?
PAUL HIEBERT – Todas as parábolas são contextualizações locais. Hoje nós devemos usar parábolas, não somente as parábolas bíblicas, mas situações reais do nosso dia-a-dia também.
TODOSNÓS – O senhor deve saber que a igreja brasileira foi influenciada na sua formação e ao longo do tempo pela cultura européia e americana, que implantou seus costumes como sendo “o certo”, é possível para a nossa igreja hoje resgatar sua identidade cultural e aplicá-la a uma teologia nos moldes brasileiros?
PAUL HIEBERT – Num certo sentido a igreja católica trouxe o catolicismo da península ibérica, Portugal e Espanha, e trouxe para cá um modelo de catolicismo ibérico. Os protestantes trouxeram mais da Europa do norte e dos Estados Unidos. Minha pergunta é: Qual é a identidade brasileira?Porque aqui há uma influência muito grande ibérica, depois, norte da Europa, Estados Unidos, também árabe, dos índios nativos e dos negros africanos... È uma grande mistura. Por isso eu vejo no Brasil um bom modelo de integração transcultural. Então todos esses detalhes devem ser estudados para se estabelecer qual é a “identidade brasileira”. Então vem a questão da nova contextualização cristã brasileira.
Os estudiosos precisam trabalhar exatamente nessa questão da identidade, de como juntar essas partes, porque isso pode se tornar um modelo na evangelização tribal, nos vilarejos, e inclusive urbana. Não existe só uma identidade brasileira; existem muitas influências de tudo quanto é lugar, misturado. Não podemos somente pegar uma identidade – aquela que achamos correta – e aplicarmos o Evangelho para ela; ela é muito mais complexa. Eu creio que a igreja evangélica no Brasil pode ajudar a formar essa identidade brasileira, mais vai ter que avaliar todas as influências que teve dos Estados Unidos e Europa e não somente aceitá-las como se fossem as respostas.
TODOSNÓS – Bruce Olson em seu livro “Por esta cruz te matarei”, comenta que quando estava ensinando os índios sobre a questão de “construir sua casa sobre a rocha”, os índios não conseguiam aceitar essa parte, pois eles não conheciam esses métodos de construção e construíram suas casas (ocas) apoiadas em estacas fincadas na areia; então ele inverteu os fatos bíblicos para que eles compreendessem a moral do ensino e ensinou que o homem sábio edificou sua casa sobre a areia. O que o senhor acha? Ele contextualizou correto ao inverter os fatos bíblicos?
PAUL HIEBERT – Antigamente se pensava que não se poderia fazer isso, porque a Bíblia não diz isso. A tradução teria que ser literal, sem nenhuma contextualização. Depois começaram a dizer: “Não, temos que contextualizar, então foram para o outro extremo”. Bruce, nesse caso representa o outro extremo. Ele tentou corrigir o modelo antigo, porque o modelo antigo estava errado. Talvez as pessoas entendessem melhor dessa forma, mas não é o que as Escrituras estão dizendo. Agora estamos chegando mais para a contextualização crítica, temos que manter a Bíblia como foi escrita, depois podemos colocar notas no roda-pé ou notas explicativas. È mais fácil fazer esse processo com parábolas, porque elas são literais. Nos ensinamentos de Jesus, temos que ter ainda mais cuidado para manter a forma como está nos originais. Eu compreendo o que ele fez, mas eu não faria dessa forma. O que eu faria era o seguinte: traduziria como está no texto sagrado, mas colocaria uma nota de roda-pé, explicando o que isso significa na nossa cultura.
TODOSNÓS – Dentro da mesma questão: nós queríamos saber se ele poderia ensinar aos índios o método de edificação sobre a rocha? Ou se ele fizesse isso estaria adulterando a cultuara dos índios?
PAUL HIEBERT – O que eu acho que poderia fazer era dizer: “Isso é o que a Bíblia diz”. Jesus disse: “Façam suas casas sobre a rocha”. Então, nas notas de roda-pé, um comentário dizendo o que isso significa para essa cultura. Isso não mudaria a cultura, mas explicaria o que Jesus estava dizendo para aquela cultura. Um exemplo simples disso seria o dinheiro. A Bíblia pode dizer lá que “eram trinta ciclos”. Nós podemos traduzir como trinta ciclos. Alguém diria: “Temos que traduzir isso como quinhentos dólares. Agora todos compreenderiam”. A questão é que na época não havia dólares. Então com a inflação o valor vai mudando e na próxima edição sairia por setecentos ou novecentos dólares. Então devemos traduzir como trinta ciclos e colocarmos uma nota do roda-pé, dizendo que isso corresponde a mais ou menos tantos dólares. Assim ficaria fácil mudar a nota de roda-pé, porque todos sabem que roda-pé é uma explicação e não o texto em si.
TODOSNÓS – O senhor concorda com a afirmação de que o missionário é um destruidor de culturas, como dizem os antropólogos? Quando é que isso é verdade?
PAUL HIEBERT – Missionários destroem culturas, o comércio destrói culturas, o governo tem destruído culturas, educação tem destruído culturas, Coca-cola tem destruído culturas, Mercedes Benz tem destruído culturas. As culturas estão sempre mudando. Não existe cultura estática.
O comércio e o governo têm destruído as culturas muito mais que os missionários. A questão sobre mudança é: a mudança é boa ou ruim. Não queremos olhar para aquelas pessoas que estão morrendo de fome e dizer que isso faz parte da cultura e deixá-las morrerem de fome. Não queremos que elas morram de pragas ou doenças se nós temos remédios e podemos ajudar. Nós como missionários, devemos ajudar as pessoas a manter suas culturas, mas transformá-las fazendo com que elas sejam melhores.Muitos antropólogos acusam os missionários falsamente de destruírem culturas, mas o sistema educacional moderno destrói mais culturas do que os missionários. Cientistas, sociólogos...Todos estão tentando fazer mudanças culturais. Programas de desenvolvimento e outros mais. Agora, os antropólogos não querem que elas mudem. Nesse caso, o antropólogo é colonialista, porque o antropólogo decide: “Eles não podem mudar, mesmo que eles queiram”. Se sair um novo modelo de computador , o antropólogo quer um ; mas se um nativo quiser também, o antropólogo diz que não, que eles não podem ter.
Então os antropólogos devem ter muito cuidado porque às vezes eles não mudam culturas, mas eles se transformam em colonialistas, tão maus quanto aqueles que mudam as culturas.
TODOSNÓS – No Brasil os antropólogos não querem que os missionários entrem nas tribos indígenas, dizendo que essas tribos devem continuar com sua cultura original. Será que isso não é remorso pelo que o próprio país fez com o índio no passado, desprezando sua cultura e sua gente?
PAUL HIEBERT – Eles estão tentando nos lembrar que não devemos destruir culturas de uma forma maléfica. Como missionários devemos ser sensíveis ao que as pessoas das tribos estão falando. Mas se querem ser honestos, os antropólogos deveriam falar muito mais alto contra os grandes projetos, (empreendimentos onde milhões de árvores são cortadas). Onde os missionários foram, acabaram traduzindo a Bíblia para a língua nativa. Fazendo isso estamos mostrando respeito pela cultura e tentamos preservá-la. Quando o governo diz para os índios que eles devem aprender o português, o governo está destruindo a cultura. Muitas vezes os missionários têm ajudado essas tribos a se modernizarem, mas manter a sua cultura dentro da “modernidade”. Então isso é uma ponte entre o tradicional e o moderno. Muitos antropólogos querem mantê-los, querem que eles permaneçam tradicionais, mas o povo quer os remédios, eles querem os computadores, nós dizemos: “Não, não podem”. Nós mantemos essas pessoas como animais num zoológico para que possamos estudá-las e ganhar dinheiro com elas. Se os antropólogos gostam tanto delas, então por que não vão lá viver com elas? Não, eles não querem isso, eles querem viver em suas casas grandes. Eles não amam essas pessoas, eles não vivem toda sua vida lá. Eles as estudam como animais, você compreende? Eles dizem: “vamos preservar essa cultura”, mas eles não as amam realmente; se não, eles iriam lá e tentariam ajudá-las. Num mundo moderno, não haverá pessoas que não sejam afetadas pelo modernismo. Porque as pessoas tribais , na primeira oportunidade que têm, vão logo comprar lanternas, facões, facas e outros artefatos ou até mesmo armas de fogo? Elas querem isso. Nós não devemos forçá-los a permanecer num estado tradicional. Nós devemos deixar que eles mesmos tomem essa decisão, e devemos estar lá para ajudar da melhor forma possível. Dessa forma eu acho que os antropólogos nem sempre são amorosos.
via site da Missão Avante - http://www.missaoavante.org.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário