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terça-feira, 27 de agosto de 2013

Colportores: Heróis Esquecidos da Obra Missionária no Brasil



Alderi Souza de Matos
Geralmente se afirma que as missões protestantes no Brasil tiveram início em caráter definitivo com a chegada dos Revs. Robert Reid Kalley e Ashbel Green Simonton, na década de 1850. Todavia, muitos anos antes havia surgido a primeira manifestação significativa do protestantismo missionário no país, que foi o trabalho das sociedades bíblicas, a Britânica e Estrangeira, fundada em 1804, e a Americana, fundada em 1816. A sociedade inglesa começou a enviar Bíblias para o Brasil de modo regular poucos anos antes da independência. Essas Bíblias, impressas na Inglaterra, geralmente eram na versão do padre Antônio Pereira de Figueiredo, visando facilitar a sua aceitação no ambiente católico. Inicialmente foram trazidas por capitães de navios, comerciantes e diplomatas. Mais tarde as sociedades bíblicas passaram a ter os seus próprios agentes no Brasil.

1. Pioneiros ilustres
Dois homens ligados à Sociedade Bíblica Americana tornaram-se famosos na história do protestantismo brasileiro: o metodista Daniel P. Kidder e o presbiteriano James C. Fletcher. Kidder esteve no Brasil de 1837 a 1840, como integrante de uma missão metodista no Rio de Janeiro. Viajou amplamente pelo país, vendendo Bíblias e fazendo contatos com pessoas de destaque. Escreveu um valioso livro dando suas impressões sobre o país: Reminiscências de viagens e permanência no Brasil (1845). Fletcher, que esteve no Brasil na década de 1850, também promoveu a distribuição das Escrituras, ao lado de muitas outras atividades. Ele atualizou o livro de Kidder, publicando-o sob o título O Brasil e os brasileiros (1857). Outros pioneiros importantes nessa área foram o escocês Richard Holden e o americano Hugh C. Tucker. Duncan A. Reily observa que desde a vinda dos primeiros missionários houve estreita conexão entre a obra denominacional e a bíblica, pois o conhecimento da Bíblia era tido como base indispensável para o trabalho evangélico.[1]

Para facilitar a distribuição das Bíblias, principalmente no vasto interior do país, as sociedades passaram a contratar “colportores”, homens simples, dedicados e corajosos que escreveram algumas das páginas mais inspiradoras da história da evangelização do Brasil. Eles saíam por toda parte, deslocando-se a cavalo, de trem, barco e a pé, vendendo Bíblias, Novos Testamentos, panfletos e periódicos a quem encontrassem. Por força do seu trabalho, eram também evangelistas e plantadores de igrejas. Foram companheiros e, com freqüência, precursores dos missionários e dos pastores nacionais. O trabalho destes últimos muitas vezes foi facilitado pela atuação dos incansáveis colportores. O Rev. Edward Lane afirmou: “O trabalho do colportor é o braço direito do missionário; o que ele faz distribuindo a Palavra de Deus não pode ser subestimado”.[2] Muitos desses obreiros trabalharam sob os auspícios dos primeiros grupos evangélicos do Brasil: congregacionais, presbiterianos, metodistas e batistas.

Durante boa parte do século 19 e a primeira metade do século 20, foram muitos os colportores que atuaram no Brasil. Alguns deles se tornaram figuras lendárias, como o espanhol Tomás Gallart, batizado pelo Rev. Kalley em 1861, que percorreu todo o rio São Francisco e o litoral desde o Amazonas até o rio da Prata, vindo a falecer em 1876. Outro personagem famoso de um período posterior foi Frederick C. Glass, que publicou o livro
 Adventures with the Bible in Brazil (Aventuras com a Bíblia no Brasil). Trabalhou em Mato Grosso e outras regiões do interior do Brasil.


2. A contribuição dos imigrantes
 
Em seu livro mais conhecido, o Rev. Vicente Themudo Lessa menciona muitos colportores que tiveram ligações com a obra presbiteriana no Brasil.[3] Vários desses obreiros eram portugueses e foram membros da Igreja Evangélica Fluminense, fundada em 1858 pelo Rev. Robert Kalley. É o caso de Manoel José da Silva Viana, que ingressou nessa igreja em 1866 e dois anos mais tarde foi enviado a Pernambuco como colportor da Sociedade Bíblica Britânica. Foi ordenado diácono da Igreja Fluminense em 1872. Fundou e pastoreou até 1877 a Igreja Evangélica Pernambucana (organizada pelo Rev. Kalley em 1873). Voltou então a trabalhar como colportor, desta vez com a Sociedade Bíblica Americana, sob a supervisão do Rev. John Rockwell Smith, o pioneiro presbiteriano do Nordeste. Em 1879 tornou a servir a Sociedade Britânica, vindo a falecer em Recife em 1880. Iniciou o trabalho evangélico na Paraíba e também em Alagoas e Sergipe.

Dois desses lusitanos foram pioneiros da obra evangélica na capital paulista. Antônio Marinho da Silva, outro membro da Igreja Fluminense, trabalhou por dez meses em São Paulo em 1862, no interior e na capital, como colportor da Sociedade Bíblica Britânica. Acompanhou o Rev. João Fernandes Dagama na primeira visita deste à cidade de Campos, em 1872. Por sua vez, Manoel Pereira da Cunha Bastos, um diácono da Igreja Fluminense, era colportor da Sociedade Bíblica Americana. Foi enviado a São Paulo pelo Rev. Simonton poucos meses antes da chegada do Rev. Alexander L. Blackford e contribuiu para a conversão dos primeiros membros da Igreja Presbiteriana. João Antônio de Menezes era irmão do Rev. Manoel Antônio de Menezes, a quem evangelizou. Trabalhou para a Sociedade Bíblica Britânica em muitos pontos do Nordeste brasileiro, inclusive no interior do Maranhão, e faleceu em 1930. Francisco da Gama, um irmão do Rev. João F. Dagama, foi um dos primeiros membros da Igreja Fluminense e um dos primeiros colportores a trabalhar no Brasil.

Outro estrangeiro que se destacou como colportor foi o italiano Bartolomeu Reviglio, um dos antigos membros da Igreja Presbiteriana de São Paulo, na qual professou a fé em 1867. Mais tarde tornou-se membro da Igreja de Rio Claro. Foi incansável colportor e evangelista, tendo auxiliado os Revs. João Fernandes Dagama, Robert Lenington e outros missionários no interior de São Paulo e no sul de Minas Gerais. Enfrentou dificuldades e perseguições em árduas viagens e faleceu em 1901. O alemão Jacó Filipe Wingerther residiu por muito tempo nos Estados Unidos, de onde veio para o Brasil em 1867, na companhia de imigrantes sulistas. Em 1870 foi convidado pelo Rev. Edward Lane para trabalhar entre os colonos de origem alemã residentes no interior de São Paulo. Foi presbítero da Igreja de Mogi-Mirim, tendo visitado muitos locais na Mogiana, Triângulo Mineiro e sul de Goiás. Fez diversas viagens na companhia dos Revs. John W. Dabney, John Boyle, Delfino Teixeira e Miguel Torres. Trabalhou inicialmente com a Missão de Nashville e depois com a Sociedade Bíblica Americana.


3. De norte a sul
 
Muitos colportores eram nordestinos e trabalharam na sua própria região. Um dos mais destacados foi o paraibano Francisco Filadelfo de Souza Pontes, que colaborou com o Rev. Alexander Blackford quando este era agente da Sociedade Bíblica Americana (1877-1880), acompanhando-o numa visita ao Maranhão em 1878. Pontes fez longas viagens de colportagem e de evangelização do rio São Francisco para o norte. Esteve à frente da congregação presbiteriana de Goiana e por dois anos, até o final de 1883, dirigiu a da Paraíba (João Pessoa), em meio a fortes perseguições. Residiu por dois anos em Caxias, no Maranhão, onde estabeleceu a congregação presbiteriana, e por onze anos em Teresina. Regressou à Paraíba, onde faleceu em 1909. João Mendes Pereira Guerra converteu-se em Goiana em 1878 e foi presbítero da Igreja do Recife. Auxiliou o Rev. John R. Smith e outros missionários do Nordeste. Suas viagens de colportagem estenderam-se até o Amazonas. Residiu por breve tempo em São Luís e por muitos anos no Ceará.

O congregacional Jerônimo de Oliveira também auxiliou o Rev. Smith. Trabalhou em Pão de Açúcar e outros locais às margens do rio São Francisco, e no litoral até Belém do Pará. Voltando a Pernambuco, pastoreou a Igreja Recifense, fundada por ele em 1889. Mais tarde tornou-se pastor batista. Outros colportores menos conhecidos que atuaram no Norte e Nordeste foram Silvino Neves, que trabalhou no Maranhão (São Luís, Rosário, Caxias) e em Teresina; Alexandre da Gama, que trabalhou em Nazaré (Paraíba) e no Rio São Francisco, indo depois para a Bahia, onde foi auxiliar do Rev. Blackford; e José Clementino, que também trabalhou na Bahia, onde foi companheiro de viagens do Rev. George Chamberlain.[4]

O Centro-Sul também foi palco da atuação de muitos colportores, vários dos quais foram membros da Igreja Presbiteriana de São Paulo. Manoel Jacinto Botelho, enteado do Rev. José de Azevedo Granja, tornou-se membro dessa igreja em 1870. Lourenço Moreira de Almeida filiou-se à igreja em 1878. Era tio do Rev. Álvaro Reis e foi companheiro de viagens do Rev. John Boyle. Faleceu em idade avançada na década de 1930, na região de Araguari. Luiz Bernini, um valdense italiano, foi arrolado na Igreja de São Paulo em 1881. Faleceu aos 80 anos em 1926. O português Manoel de Souza e Silva ingressou na mesma igreja em 1882. Após trabalhar como colportor no Brasil, voltou para Portugal, onde publicou um jornal evangélico (
A luz do mundo). Pouco antes de falecer, tornou-se pastor batista. Guilherme da Costa, um filho do presbítero Manoel da Costa, tornou-se um dedicado pastor metodista e faleceu em 1904.

Camilo Cardoso de Jesus e Antônio Pinto de Souza, os primeiros diáconos da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, também serviram como colportores. José Freitas de Guimarães, outro membro dessa igreja, foi auxiliar do Rev. Francis J. C. Schneider na Bahia, e Bernardino J. Rabello trabalhou para a Missão de Nova York no Rio de Janeiro, na década de 1870. Francisco Augusto Deslandes (1860-1937), um dos fundadores da Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte, acompanhou os Revs. Samuel Gammon, David Armstrong e Horace Allyn a muitos pontos do sul e oeste de Minas Gerais. Antônio Rangel foi companheiro de viagens dos Revs. John Boyle e George Thompson em São Paulo e no Triângulo Mineiro. Francisco Machado e Estêvão Gibotti colaboraram com o Rev. Emanuel Vanorden no Rio Grande do Sul. O trabalho presbiteriano no Paraná contou com o auxílio inicial de pelo menos três colportores: Francisco Alves de Oliveira, da Sociedade Bíblica Americana; Antônio Pinheiro de Carvalho, da Sociedade Bíblica Britânica; e principalmente João Antunes de Moura (1849-1928), que foi presbítero da Igreja de Itapeva e um assíduo participante dos concílios da IPB.

Os primeiros pastores presbiterianos nacionais foram todos colportores quando ainda eram aspirantes ao ministério. No Nordeste, houve os discípulos do Rev. John R. Smith: João Batista de Lima, José Francisco Primênio da Silva e Belmiro de Araújo César. Referindo-se a Smith, Themudo Lessa afirmou: “De largo descortino como missionário, soube rodear-se de um corpo seleto de colportores-catequistas, que foram desbravando o terreno para a sementeira que se ia fazer. Eram homens de fé e de coragem, prontos a arrostar perseguições por amor da causa em que se empenhavam”.[5] No Sul, os primeiros candidatos ao ministério que trabalharam como colportores foram Antônio Bandeira Trajano, Miguel Gonçalves Torres, Antônio Pedro de Cerqueira Leite, João Ribeiro de Carvalho Braga e João Vieira Bizarro, entre outros. Belarmino Ferraz (1858-1943), que seria o primeiro pastor ordenado pela Igreja Presbiteriana Independente, foi companheiro de viagens do Rev. Dagama no interior de São Paulo.


Conclusão
 
O Rev. Boanerges Ribeiro registrou as dificuldades enfrentadas por muitos colportores: “Em 1864 o delegado expulsava um colportor de Santo Amaro, Bahia, depois de apreender seus livros. Em 1867 um delegado negava licença para vender Bíblias em Sergipe. Em 1869, em Santos, um delegado expulsava o colportor da cidade, obstando a que retirasse um caixote de Bíblias da alfândega. Em 1871, em Olinda, o Vigário Capitular apreendia as Bíblias de um colportor previamente detido pelo delegado de polícia. Em 1873 em Guaratinguetá um colportor era ameaçado de espancamento, após violento sermão do padre contra suas Bíblias – e tinha de retirar-se... Colportores sempre foram parte valiosíssima do staff missionário, nesses anos iniciais. Precediam os pregadores; sofriam os primeiros embates da oposição, e os enfrentavam. Abriam novas frentes evangelísticas. Homens rústicos, primários na instrução, dedicados e decididos, pouco valeu contra sua presença constante, o latim, a artilharia patrística e a alta posição dos bispos: abriram caminho, espalharam Bíblias, deixaram atrás de si famílias prontas para aderir ao protestantismo”.[6]

Considerando a enorme contribuição que prestaram à obra missionária em geral e ao presbiterianismo nascente no Brasil, esses personagens têm sido pouco lembrados pelos historiadores e pelas igrejas. Apesar do seu pioneirismo como desbravadores, eles poucas vezes têm recebido o crédito pelo trabalho que realizaram. Existem alguns livros sobre eles, mas são poucos os estudos sistemáticos sobre as suas atividades e sobre o significado da sua obra. Espera-se que estas breves considerações sirvam de estímulo para um maior reconhecimento dos seus esforços e para o resgate histórico de suas vidas e contribuições à causa de Cristo.


Notas
 
[1] REILY, Duncan Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1993, p. 70.

[2] Apud FERREIRA, Júlio Andrade.
 Galeria evangélica: biografias de pastores presbiterianos que trabalharam no Brasil. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1952, p. 97. Em seguida, Lane dá algumas sugestões quanto ao sustento dos colportores.

[3] LESSA, Vicente Themudo.
 Anais da 1ª Igreja Presbiteriana de São Paulo. São Paulo, 1938.

[4] O professor Caleb Soares narra muitas histórias de colportores do Nordeste em seu livro
 Januário Antônio dos pés formosos. Campinas: Luz Para o Caminho, 1996.

[5] LESSA,
 Anais da 1ª Igreja, p. 288.

[6] RIBEIRO, Boanerges.
 Protestantismo e cultura brasileira: aspectos culturais da implantação do protestantismo no Brasil. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1981, p. 151-153.


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