Começo este texto com uns cinco anos de atraso. Eu explico. Nos tempos em que eu morava em Moçambique, certa mulher, no evangelismo, me deixou sem resposta quando me disse: “Eu aceito esse seu Jesus. Mas quanto aos meus filhos que não têm o que comer hoje à noite? Não tens nada a dizer?” Parece clichê, mas aconteceu de fato.
Rumino essa pergunta desde então. Ouvi reclamações parecidas de outras pessoas, naquela região; hoje, essas lembranças me revisitaram quando li o livro da Analzira Nascimento,
Evangelização ou Colonização? Senti que preciso escrever sobre o meu desconforto de ver modelos de evangelização colonialistas, que não se importam com o outro, em pleno século XXI. Deixe-me clarificar isto: meu desejo é ver a missão da igreja permeada com a elegância, inclusão, compaixão e solidariedade do Evangelho. Mas nossa maneira de evangelização, às vezes, é outra. Há ainda muitas caravanas missionárias movidas por motivações muito diferentes das que o senhor Jesus ensinou.
Parece que tenciona-se fazer uma evangelização que simplesmente arrebanhe um grande número de pessoas para encher os templos cristãos. Podemos falhar na nossa abordagem evangelística quando compartilharmos a nossa fé sem respeitarmos a “casa do outro”. A nossa obsessão por cumprir metas e implantar programas pode “invisibilizar” o outro, e isso é colonialismo.
Avanços numéricos de missionários com essa mentalidade em várias regiões do hemisfério sul já deram sinais suficientes de como é desastroso o tal empreendimento no campo missionário
Antes que me jogue uma enxurrada de pedras pelo que coloquei até agora, perceba que não pretendo, de forma alguma, desvalorizar o trabalho competente de algumas igrejas e organizações missionárias. Seria muita burrice e ingratidão da minha parte dizer que nada que preste foi feito até agora. Inclusive, em minhas preleções pelo Brasil afora, procuro sempre agradecer ao povo brasileiro pelas orações e esforços que têm empenhado em prol do povo africano. Desejo apenas convidar a reavaliarmos nossas motivações missiológicas.
Agora, quem nunca perguntou para um amigo ou um missionário da igreja: Quantas almas você ganhou para Cristo ano passado? O problema de perguntas como essa é que revelam nossa obsessão pelos números. Pior, não levam em conta o nome, a história e a identidade do outro. O “outro” é visto como objeto, é apenas o “alvo” da nossa missão, que mostra se alcançamos ou não os objetivos do nosso grupo.
Ainda em nossos dias, em vários países africanos e mesmo no Brasil, é possível encontrar igrejas que exigem o uso de terno e gravata para seus ministros quando estão à frente de alguma celebração. Sei de cultos longos, debaixo de temperaturas elevadíssimas e ao ar livre, que o líder jamais se apresenta sem traje ocidental formal completo, porque foi assim que “o missionário ensinou”. O traje típico africano não era considerado espiritual e apropriado para oficiar.
Não gosto nem de pensar no destino de canções como “Ninrowa wira só” ou “Navolowé mama na volowé” tomariam, caso fossem substituídas por completo pelos hinos da Harpa. Certa feita um amigo, ex-seminarista, me contou que seu pastor brigou com ele porque não estava usando terno, no culto. A resposta dele foi a seguinte: “o único problema, pastor, é que não tenho dinheiro para comprar o segundo terno”.
Me entendam, não sou contra o terno e a gravata. O que me causa pavor é essa lógica colonialista que rotula a cultura e a vivência do outro como cultura de “segunda categoria”. Aí eu pergunto: e Jesus que andava de vestido pelas ruas da Galileia? E os apóstolos que comiam à mão, sentados no chão? São inferiores por isso?
Cada vez que um missionário leva um montão de gravatas para distribuir nas aldeias eu me flagro perguntando: como seria se eu levasse um montão de balalaicas (roupa típica africana) para o país dele? Será que usariam esse adorno tão belo em todos os cultos? Você é inteligente e já intuiu onde quero chegar.
Prefiro que o processo da enculturação seja natural, sem imposição, sem execrar as vivências do outro como diabólicas. Se houver interesse por parte dos evangelizados em adotar alguns costumes do ocidente, que seja por opção deles. Nossa tarefa é levar a Boa Notícia. O chinelo que vem do ocidente é muito bem-vindo sim, mas a tentativa de homogeneizar a cultura precisa ser repensada. Confesso que tenho a tendência de pensar que todo o esforço de higienizar os costumes do outro (não sendo eles imorais) é colonialista e hipócrita.
O projeto cristão visa preparar para a vida. Jesus jamais pretendeu anular os costumes de povos não-judeus. Daí ele celebrar a fé em um centurião, adorador no paganismo romano, como digna de elogio.
No livro supracitado, Analzira trata desse tema com sensibilidade e competência. Ela, uma missionária da Junta de Missões Mundiais, que serviu em Angola por 17 anos durante a guerra civil. Doutora em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo e responsável pelos projetos missionários da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo. Mostra historicamente como chegamos a este modelo missionário colonialista, sem poupar críticas aos que se julgam saber o que é melhor para o outro. Dá voltas na história das missões, porém não perde de vista o seu objetivo.
O livro começa descrevendo a crise pragmática sociocultural e epistemológica que vivemos neste início de milênio e que afetou também o projeto missionário cristão. Faz uma boa demonstração da influência do iluminismo no pensamento e prática missionária, contribuindo para configurar o sentimento de superioridade ocidental, que foi fortalecido com os projetos colonialistas. Descreve a crise desse modelo e sugere a busca de uma adequação para superar o descompasso com um novo mundo.
Expõe como o modelo de missão foi sendo sedimentado a partir da compreensão que a igreja tinha acerca do seu papel no mundo em cada época. O livro fica mais interessante no capítulo sobre o protestantismo, quando discute o projeto imperialista e monocultural que a Reforma Protestante impulsionou com marcas do puritanismo e do pietismo. No último capítulo, propõe um reencontro com a dialogicidade para atuar uma nova lógica descolonizada. Defende a recuperação do modelo ideal bíblico, o aprendizado com a história e a educação do olhar para ver o mundo na perspectiva do outro. Afirma que é preciso parar de invadir “a casa do outro”, entender que ele também tem o que dizer e que, ouvindo, alcançaremos condições do diálogo.
Analzira, a escritora-focada, não se prende muito nas questões teológicas nem quando vê um assunto que poderia garantir um belo debate como a Missio Dei. Diz ela que o livro não é sobre teologia da missão, mas sobre encontrar alternativas que recuperem o ideal do projeto inicial de Deus.
Entretanto, Analzira está sempre atenta às questões mais importantes. Por exemplo, quando precisou redefinir o termo “missão”, chama Karl Barth, que definiu missão como a ação de Deus no mundo. E o africano David Bosch que disse que missão é envolver-se no movimento do amor de Deus com a humanidade. Assim, a Missio Dei nos dá uma visão mais holística e traz abordagens mais relacionais e menos gerenciais.
As comunidades evangélicas não deveriam se fechar em seus guetos, falando com um mundo que não existe. É preciso ter uma visão sistêmica que contempla o homem na sua integralidade e compreender nossa responsabilidade diante da sociedade contemporânea.
Levar o Evangelho não significa se impor diante da cultura do outro. Na evangelização, fica implícito que todos podem continuar a tecer, compor, escrever, brincar, dançar como sempre fizeram, desde que isso não se oponha ao evangelho. O evangelho nos convoca à pratica da justiça; traz abordagens solidárias entre distintos homens e mulheres e nos convida a tornamo-nos cada vez mais parecidos com Jesus, nosso irmão e amigo.
Portanto, que possamos negar na nossa prática missionária a colonização e adotar mais o modelo de evangelização dialogal.
DANIEL ANTÓNIO BUANAHER é graduando em Teologia pela Fundação Universitária Vida Cristã (FUNVIC) e em Pedagogia Pela Universidade Norte de Paraná (UNOPAR). É africano de nacionalidade moçambicana, natural da cidade de Pemba, Província de cabo Delgado. Atualmente reside no Brasil. Daniel Buanaher (como gosta de ser chamado) é o filho mais velho do casal António Buanaheri e Maria Buanaheri.