domingo, 9 de maio de 2021

SOMOS TODOS MISSIONÁRIOS?: UMA INTRODUÇÃO AO CONCEITO DA PALAVRA MISSIONÁRIO


Wesiley Monteiro

    O vocábulo missionário deriva da palavra latina (mitto) que corresponde ao termo grego do Novo Testamento traduzido como apóstolo, o qual significa “enviado”. Silas Tostes afirma que um dos usos do termo grego “apostolos” designa “missionários transculturais” (Sou Eu um Apóstolo? in Perspectivas no Movimento Cristão Mundial, pp. 214-218).

            Baseando-se em Patrick Johnstone (O Futuro da Igreja Global, p. 226), pode-se dizer inicialmente que o termo MISSIONÁRIO indica a pessoa enviada por uma igreja local com o objetivo de: 1. Evangelizar; 2. Plantar igrejas; 3. Servir (ação social, discipulado, treinamento de obreiros nativos, tradução e distribuição da Bíblia e de literatura cristã, cuidado pastoral etc.).

            A complexidade atual da obra missionária levou à substituição de concepções restritas de “missionário” por conceitos bastante abrangentes. Por exemplo, a exigência ideal de atuação “onde Cristo ainda não foi anunciado” (longe ou perto) excluiria do conceito a maioria dos missionários que se dedicam à capacitação de obreiros nativos.

            Listamos a seguir cinco conceitos distintos de missionário, de modo progressivo, do mais restrito ao mais amplo. Três foram adaptados dos conceitos elencados por Patrick Johnstone (2, 3, 4), e os outros dois (1, 5) foram derivados para a noção mais restrita e para a noção mais ampla, respectivamente. Os três conceitos “centrais”, que refletem preferências existentes nos diferentes continentes (2, América do Norte; 3, Europa e América Latina; 4, África e Ásia), também constam no Apêndice 3 do livro Ore pelas Nações (Operation World), p. 362:


1. Toda pessoa enviada para evangelizar, plantar igrejas ou servir de modo transcultural, fora das fronteiras da Cristandade. Esse conceito restringe a atividade missionária ao pioneirismo apostólico. Missionário seria quem desbrava os campos dos povos não alcançados, inclusive dos povos carentes de reevangelização após desaparecimento ou declínio acentuado do cristianismo (como em regiões do Norte da África, Oriente Médio e Europa).

2. Toda pessoa enviada para evangelizar, plantar igrejas ou servir de modo transcultural, fora de seu país. Esse conceito não requer que o missionário (estrangeiro) execute trabalho evangelístico pioneiro, embora o pioneirismo possa ser visto como preferencial (o que de fato deve ser, tendo em vista, por exemplo, Lc 4:43 e Rm 15:20).

3. Toda pessoa enviada para evangelizar, plantar igrejas ou servir de modo transcultural, no exterior ou no seu próprio país, mas fora de seu local de origem. Esse conceito abrange, por exemplo, os missionários transculturais brasileiros que exercem suas atividades em nosso próprio país. Em pesquisa acerca do contingente de missionários brasileiros, a Associação de Missões Transculturais Brasileiras considerou “missionário transcultural brasileiro” no Brasil, para o propósito da pesquisa, quem trabalha entre os indígenas, ribeirinhos, ciganos, quilombolas, sertanejos, surdos, imigrantes, refugiados e hippies (Força Missionária Brasileira Transcultural: pesquisa AMTB 2017, p. 03).

4. Toda pessoa enviada para evangelizar, plantar igrejas ou servir de modo transcultural ou não, no exterior ou no seu próprio país, mas fora de seu local de origem. Esse conceito admite o missionário monocultural, desde que deixe seu lugar de domicílio  (de modo permanente ou não). Lembremos que o Apóstolo Paulo também trabalhou de modo monocultural (entre os judeus). O conceito abrange, por exemplo, o obreiro brasileiro que sai para plantar uma igreja no interior de seu estado (missões estaduais).

5. Toda pessoa enviada para evangelizar, plantar igrejas ou servir de modo transcultural ou não, no exterior ou no seu próprio país, ainda que em seu local de origem, desde que em ministério de tempo integral ou bivocacional. Esse conceito abrange o missionário urbano, inclusive o que alcança estrangeiros na sua própria região. Tempo integral e ministério bivocacional (ainda que em tempo parcial) distinguem o missionário do cristão comum que evangeliza em seu contexto ou que colabora em visita ao campo em férias. A menção ao obreiro bivocacional inclui no conceito os profissionais em missões. Em nossa opinião, esse conceito alargado faz mais justiça à complexidade das necessidades da tarefa missionária hoje.

            Enfim, somos todos missionários? Vejamos o que diz o missiólogo William D. Taylor, embora mencione apenas obreiros transculturais em sua definição de missionário (Evangelical Dictionary of World Missions, p. 645, tradução nossa):


Fazemos um desserviço ao ‘missionário’, quando universalizamos o uso do termo. Embora todos os crentes sejam testemunhas e servos do reino, nem todos são missionários. Não glamorizamos ou exaltamos o missionário, ou lhe atribuímos maior honra na vida ou maior recompensa no céu, nem criamos um ofício artificial. Destacamos que essa conclusão decorre da teologia bíblica das vocações (Deus nos deu diversas vocações e todas são santas, mas não todas iguais); da teologia dos dons (nem todos são apóstolos, nem todos falam em línguas - 1Co 12:29) e, portanto, nem todos os cristãos são missionários; e da teologia do chamado (o Deus Trino soberanamente chama alguns para essa posição e tarefa). Esses homens e mulheres são obreiros transculturais que servem dentro ou fora de suas fronteiras nacionais e cruzarão algum tipo de barreira linguística, cultural ou geográfica como enviados autorizados”.

 

RESPOSTAS RÁPIDAS A PERGUNTAS RÁPIDAS


1. Por que todos os cristãos não são missionários de fato?

Deus é quem concede dons e é soberano no chamado específico para o ministério missionário, a ser exercido por obreiros de tempo integral ou bivocacionais. Paulo ensina: "Se todo o corpo fosse olho, onde estaria o ouvido?" (1Co 12:17) “ ou “Porventura, são todos apóstolos? Ou, todos profetas? [..]” (1Co 12:29). De certa forma, todos são missionários apenas em potencial - o que equivale a dizer que nem todos o são... De qualquer modo, todos os cristãos precisam responder ao chamado geral para o engajamento na Missão, que inclui o de evangelização onde quer que estejam.

2. A dedicação de tempo integral é importante para o conceito de missionário?

Sim, pois o ministério de tempo integral deve ser a regra. Rinaldo de Mattos, em ensaio publicado na página eletrônica da AMTB com o título A Teologia Bíblica da Vocação e Chamada, fala da necessidade de tempo integral para o missionário em sentido específico, ao citar a hipótese de três professoras que, a partir da experiência de magistério infantil em escolas públicas, decidiram ministrar a crianças. A primeira ingressou no ministério infantil de sua igreja no tempo livre; a segunda pediu exoneração do cargo público e, com o sustento de sua igreja, dedicou-se integralmente nas atividades de organização instituída com o fim de cuidar de crianças de sua cidade; a terceira segue o caminho da anterior e passa a ministrar a crianças no interior do Brasil com o apoio de sua igreja. Mattos não considera apropriado chamar de “missionária” a primeira obreira. Ele também não aplica o termo às equipes de voluntários que apoiam missionários no campo.

3. “Ministério bivocacional” deve realmente ser incluído no conceito de missionário?

A atividade profissional pode ser uma boa estratégia, ainda que leve o missionário a servir em tempo parcial. Pode ser útil nos campos “de acesso criativo“ e necessária para manutenção da atividade ministerial ou para a subsistência do próprio missionário. Assim, a inclusão de obreiros bivocacionais é necessária, embora a dedicação de tempo integral seja a ideal. Usando o exemplo de Rinaldo de Mattos, suponha que as duas missionárias tenham o sustento da igreja reduzido. Uma delas passa a ser assalariada em escola infantil confessional (onde o ensino inclui a evangelização), de modo que continua a servir em tempo integral. A outra passa a lecionar em escola particular não confessional, de modo que se dedica apenas em tempo parcial ao ministério propriamente dito. Ambas passaram a exercer ministério missionário bivocacional.

4. Por que muitas pessoas bem intencionadas passaram a dizer equivocadamente que todos os cristãos são missionários?

Há dois motivos principais. Primeiro, para rejeitar a ideia de uma “categoria” de cristãos que poderia ser entendida como limitada e especial. Mas o equívoco da categorização dos cristãos engajados na Grande Comissão não precisa ser corrigido com a afirmação de que todos são missionários, mas sim com o ensino bíblico de que todos têm igual valor, independentemente de suas funções no Corpo de Cristo (1Co 12:20-25). Segundo, para universalizar a reponsabilidade pela tarefa missionária. Porém, o apelo para o engajamento não requer a atribuição do título de missionário à generalidade dos cristãos. Nem todos os cristãos evangelizam de fato. Como, então, todos os cristãos são missionários?

5. Dizer que "a tarefa missionária compete a todos", o que é sabidamente correto, não implica dizer que todos são missionários?

A tarefa missionária somente é cumprida quando há oração, envio e colaboração de diversas formas. O cristão que ora por missionários ou que para eles contribui não se torna missionário somente por essa razão. Por exemplo, o cristão exemplar que lucra com a vida de intenso trabalho na criação de gado e contribui para o Projeto Z do missionário Y, ainda que com bastante voluntariedade e engajamento, não pode ser considerado missionário automaticamente. O engajamento em missões deve ocorrer não apenas pelo missionário, mas pelo mobilizador, colaborador, contribuinte permanente ou eventual, cuidador etc.

6. Em que sentido todos os crentes são missionários em potencial?

“Em potencial” designa uma possibilidade, pressupondo, no momento, a impropriedade da atribuição da qualificação correlata. Não sabemos previamente quem são aqueles que Deus chamará para o ministério específico de missionário. Qualquer crente pode ser vocacionado para esse ministério, o que aponta para a necessidade de que todos recebam instrução acerca dos distintos campos missionários. Devemos rogar a Deus que mande muitos obreiros missionários para a Sua grande seara (Mt 9:38). Nossa oração também deve ser para que todos os cristãos respondam ao chamado geral de evangelização onde quer que estejam. Somente na hipótese de resposta positiva é que se poderia aplicar a todos os cristãos engajados, numa acepção demasiadamente ampla, a palavra “missionário”. Mas, em relação a esse sentido genérico, o termo tem sido substituído com mais precisão pelo vocábulo abrangente “missional”, que pode ser aplicado adequadamente (inclusive) aos que evangelizam e servem com seus dons no contexto de sua própria igreja local.

7. Como acontece o chamado missionário?

Além do chamado geral de Deus para santidade e evangelização, há o chamado específico para o ministério (geralmente de tempo integral) como pastor, evangelista, mestre, missionário etc. O chamado missionário não se confunde com o direcionamento geográfico, cultural ou religioso. Segundo Timóteo Carriker (A Vocação Missionária in Perspectivas no Movimento Cristão Mundial, p. 762), o chamamento missionário “mais frequentemente, manifesta-se como uma convicção profunda e crescente, baseada em princípios bem definidos da Palavra de Deus, testemunhada no interior pelo Espírito de Deus e confirmada no exterior pelo Corpo de Cristo, a igreja”. Em outros termos, o chamado missionário pressupõe três elementos básicos: 1. Submissão à Palavra de Deus; 2. Testemunho interno do Espírito Santo e 3. Reconhecimento externo da igreja.

8. Existe hoje uma confusão terminológica?

Embora a delimitação do campo semântico de termos importantes na Missiologia não seja fácil, diz-se que a igreja é missional, termo que corresponde à missão, a qual é entendida de modo amplo como a “iniciativa histórica redentiva de Deus a favor de Sua criação” (Tennent, Invitation to World Missions, p. 54). A participação da igreja na missão de Deus inclui as missões, à qual se refere o vocábulo missionário. Este termo, quando assume a forma de adjetivo, tem campo semântico mais amplo que o termo na forma de substantivo, razão pela qual se fala em “tarefa missionária”, “igreja missionária”, “movimento missionário”, “povo missionário” etc., embora abrangendo a atividade do missionário.

9. Qual é a missão da igreja?

Existem três entendimentos básicos entre os evangélicos:

A. A missão deve ser identificada na evangelização.

B. A missão deve ser identificada na evangelização e na promoção de justiça social, mas com a primazia da proclamação do evangelho. Scott Moreau afirma que essa segunda corrente ganhou proeminência entre os evangélicos (Evangelical Dictionary of World Missions, pp. 636-638).

C. A missão deve ser identificada na evangelização e na promoção de justiça social, sem a primazia de qualquer uma delas.

10. Qual a diferença entre evangelismo e missões?

Evangelismo se refere simplesmente à comunicação do evangelho. Essa comunicação pode ocorrer não apenas em palavras, mas também com obras em relação às quais há inequívoca percepção de que refletem o amor de Cristo. Missões abrangem o evangelismo, cruzando barreiras culturais, geográficas ou até mesmo sociais (evangelismo monocultural e transcultural). São realizadas tanto pelos missionários que servem em campo, como por colaboradores que oram e contribuem de diversas formas. Mas a condição de “parceiros da missão” não os torna automaticamente “missionários”, da mesma forma que um ato de evangelismo por um cristão não o torna ipso facto detentor do dom de evangelista.

11. O missionário que planta uma igreja e permanece por muito tempo como pastor local da igreja plantada deixa de ser missionário e se torna um pastor não missionário?

Considerando que a vocação missionária é distinta da vocação pastoral, o missionário que assume cumulativamente o ministério pastoral pode permanecer como missionário pastor (ou pastor missionário) durante muito tempo. Ele naturalmente deixa de ser missionário caso assuma o pastorado em caráter exclusivo e definitivo.

12. Os líderes de organização missionária que permanecem durante muito tempo nas atividades de retaguarda (logística, cuidado missionário, capacitação etc.) podem ainda ser considerados missionários?

Sim. A grande maioria já serviu e continua servindo com visitas ministeriais ao campo e são agentes estratégicos importantes na evangelização e plantação de igrejas. A mesma afirmação se aplica aos missionários pesquisadores. Na Bíblia, vemos que o grupo dos 12 Apóstolos, enquanto mantinha residência fixa em Jerusalém e dali supervisionava os campos missionários, não perdeu, é claro, a condição de “enviados”.

13. O missionário que regressou do campo, permanecendo por muito tempo sem atividade tipicamente missionária, pode ainda ser considerado missionário?

Precisamos saber se o missionário se aposentou ou apenas está desprovido das condições adequadas para retornar ao campo ou atender a novo direcionamento do Espírito. Muitos continuam servindo como capacitadores de novos vocacionados. Paulo, por exemplo, ainda que tenha ficado recluso na prisão de Cesareia por um bom tempo, não se destituiu da posição de missionário e aproveitou todas as oportunidades para a proclamação do Reino de Deus entre as autoridades romanas.

14. Devemos considerar missionário quem apenas tem o título de missionário dado por uma igreja e não tem atividades de campo?

Cada igreja ou denominação tem seu modo de organizar sua liderança e seus ministérios. Do ponto de vista bíblico, porém, o referido título eclesiástico deve corresponder à atividade tipicamente missionária.

 

BIBLIOGRAFIA CITADA

 

ASSOCIAÇÃO DE MISSÕES TRANSCULTURAIS BRASILEIRAS. Força Missionária Brasileira Transcultural. Brasília, 2017.

CARRIKER, Timóteo. A Vocação Missionária. In: WINTER, Ralph D.; HAWTHORNE, Steven C.; BRADFORD, Kevin D (Coord.). Perspectivas no Movimento Cristão Mundial. São Paulo: Vida Nova, 2009.   

JOHNSTONE, Patrick. O Futuro da Igreja Global: história, tendência e possibilidades. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2017.

MANDRYK, Jason; WALL, Molly (Org). Ore pelas Nações: um guia completo de missões e intercessão pelo mundo (Operation World, WEC). São Paulo: Mundo Cristão, 2017.

MATTOS, Rinaldo de. A Teologia Bíblica da Vocação e Chamada: reflexão e prática.  Disponível em: http://www.amtb.org.br/a-teologia-biblica-da-vocacao-e-chamada/. Acesso em: 04 de maio de 2018.

MOREAU, A. Scott. Mission and Missions.  In: MOREAU, A. Scott (Ed.). Evangelical Dictionary of World Missions. Grand Rapids: Baker Books, 2000.

TAYLOR, William D. Missionary. In: MOREAU, A. Scott (Ed.). Evangelical Dictionary of World Missions. Grand Rapids: Baker Books, 2000.

TENNENT, Timothy C. Invitation to World Missions: a trinitarian missiology for the twenty-fist century. Grand Rapids: Kregel, 2010.

TOSTES, Silas. Sou Eu um Apóstolo? In: WINTER, Ralph D.; HAWTHORNE, Steven C.; BRADFORD, Kevin D (Coord.). Perspectivas no Movimento Cristão Mundial. São Paulo: Vida Nova, 2009.   

2 comentários:

poetisa disse...

Realmente irmão Wesiley, é bom nos aprofundarmos sobre novos conceitos sobre os quais muitas vezes são engessados com o tempo. É preciso nós atualizarmos sempre, até mesmo porque os contextos mudam também. Nada nessa vida fica estática. As coisas mudam, evoluem, inclusive conceitos. Muito bom seu artigo.

Unknown disse...

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